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O meu filho não sabe brincar sozinho!
Ouço imensos pais a queixarem-se que os filhos não sabem brincar sozinhos, e eu também trabalho essa questão com os meus filhos continuamente. Muitas crianças têm dificuldade em entreter-se sozinhas – ou estão nos écrãs, ou andam a fazer asneiras… Há fases em que estão sempre a pedir para eu brincar com eles. Por muito que eu goste de brincar, parece que para eles nunca chega. Nunca é suficiente o tempo que passo no chão da sala e do quarto, a brincar com dragões e pinypons, ou pelo quintal a jogar às escondidas.
Felizmente encontrei a Parentalidade Consciente tinha o meu filho um ano e pouco. Foi mais ou menos na mesma altura que me comecei a confrontar com a minha própria expectativa de que, enquanto eu fizesse o jantar ou outra tarefa, ele poderia simplesmente entreter-se perto de mim com algum brinquedo… Mas não. O pequeno exigia constante atenção, então comecei a pesquisar sobre ferramentas para lidar com isso e para perceber o que seria esperado naquela etapa de desenvolvimento. Nas leituras, encontrei o conceito “Self-Directed Play” – em português, algo como brincadeira auto-dirigida. Este termo suscitou-me muita curiosidade pois estava alinhado também com os princípios da educação consciente que eu andava a explorar. Além disso estava mesmo a precisar de ajuda com o meu filhote.
Esta abordagem da brincadeira auto-dirigida propunha então que a criança deveria ter tempos de brincadeira autónoma e independente, com pouca intervenção do adulto, para poder explorar a sua criatividade e começar a adquirir competências de tomada de decisão, resolução de problemas, autoconfiança, etc. A criança é encorajada a empenhar-se nas suas experiências, brincando ao seu ritmo, seguindo as suas motivações genuínas e os seus interesses.
Fiquei interessada e recolhi umas ideias principais sobre o tema que me ajudaram a adaptar algumas atitudes na minha parentalidade. Partilho hoje com vocês as ideias chave que retive. Os meus filhos continuam a adorar a mãe para as brincadeiras, como é normal. Mas estas informações ajudaram-me muito a gerir os pedidos constantes e continuo a usar esta abordagem com bons resultados (nem sempre, claro!).
1. Primeiro que tudo, qual a responsabilidade dos pais nesta questão?
Há que reconhecer a nossa responsabilidade quando o nosso filho de 4, de 5 anos, ou mais, tem muita dificuldade em brincar sozinho… As crianças tornam-se naquilo que modelamos, guiamos e orientamos. Então provavelmente houve ações nossas que levaram a certas aprendizagens e comportamentos da criança. Posso perguntar-me: será que me envolvi sempre muito na brincadeira da criança? Será que digo demasiadas vezes coisas como “Isso não se faz assim, dá cá que a mãe mostra”? Será que impeço a criança de brincar com certas coisas, quebrando a sua espontaneidade ou será que influencio demais as suas escolhas de entretenimento?
Se há umas gerações atrás as crianças eram deixadas muito por sua conta, hoje em dia os mais pequenos são tratados e vistos de forma diferente, pelo menos no mundo ocidental. Atualmente parece que as crianças têm de estar sempre entretidas. Que temos de estar sempre a entretê-las, a ocupá-las. Levamo-las a atividades extracurriculares, eventos sociais, ao cinema, a parques, compramos imensos brinquedos e os acessos aos écrãs são o que nós sabemos.
Muitos dos comportamentos que vemos nos nossos filhos fomos nós que lhos passámos de alguma forma. Como por exemplo a parca capacidade de estarem consigo mesmos de forma serena – pelo menos alguns períodos de tempo que variam conforme a etapa de desenvolvimento. Talvez nós próprios tenhamos dificuldade em estar focados numa tarefa criativa, ou se calhar em qualquer minuto de impasse ou espera, agarramos no telemóvel. Talvez para nós também seja difícil estar sozinho com os nossos pensamentos. Muitos dos comportamentos das crianças são aprendidos com os nossos, então, pensemos nestas questões.
2. As palavras contam
- “O meu filho não sabe brincar sozinho”
- “Esta criança não é capaz de se entreter com nada”
- “Tenho de arranjar coisas para ele fazer, senão fica aborrecido”
- “Tenho de estar sempre a brincar com ele”
- “Deixo-o jogar no tablet e ver desenhos animados, senão não sabe o que há-de fazer, anda aí aborrecido”
- “Tem tantos brinquedos e não brinca com nada”
São algumas coisas que podemos dizer e até mesmo acreditar… A proposta é como sempre, prestar atenção ao que dizemos, e como dizemos. As crianças estão SEMPRE a ouvir-nos. Quando falamos com o marido, com a vizinha, com a amiga, naquela conversa de circunstância em que fazemos comentários como estes acima, o nosso filho pode parecer eventualmente entretido com o seu boneco, mas está a ouvir. E eles absorvem todas estas coisas que ouvem e os rótulos que lhes colocamos, e tendem a assumir essa persona, porque torna-se a sua identidade. É como se fosse para a criança esperado agir assim, já nem faz sentido agir doutra maneira. Mas os rótulos e seus perigos são todo um outro tema! Aqui a sugestão é de terem cuidado com a linguagem, e o mais possível formularem pela positiva dando reconhecimento e incentivo a cada conquista. Alguns exemplos de seguida:
- Reconhecer feitos (observar sem elogiar): “Bem, fizeste esse puzzle todo quase sozinho, só precisaste da minha ajuda para umas peças do meio. Estás a crescer cada dia, e o teu cérebro cada vez trabalha mais eficazmente!”
- Quando o pai chega a casa podemos comentar uma pequena conquista, de forma autêntica, sabendo que a criança está a ouvir: “Sabes, o nosso filho conseguiu fazer a torre toda do jogo sozinho, enquanto eu meti a carne ao lume, e depois jogámos os dois enquanto esteve a cozer. Foi divertido e consegui cozinhar e conseguimos jogar, ele foi muito colaborativo.”
- Quando há uma situação positiva podemos assinalar: “Ficaste entretido a pintar enquanto eu estendi toda a roupa! Isso facilitou-me imenso a vida! Agora estou curiosa para ver os teus desenhos.”
- Quando há uma conversa de café com alguém, e a criança está a ouvir, podemos salientar aquela única coisa com que brinca…: “Aqui o meu pequeno o que adora mesmo é brincar com Legos, dá-lhe muita motivação construir coisas, fica bastante tempo na mesa da sala a montar peças!”
3. Evite o caminho da culpa, estabeleça LIMITES saudáveis
Por vezes as mães e pais relatam sentir-se algo culpados por pensar que ao negar brincar com ela, a criança poderá sentir-se pouco amada, ou abandonada. E as crianças são boas a demonstrar-nos o quanto ficam destroçadas! Acontece que à luz do desenvolvimento infantil e das nossas intenções como pais, poderá fazer sentido questionar esses pensamentos.
A criança tem obviamente, variando conforme a idade, dependência do adulto para muita coisa e sem dúvida brincar com os nossos filhos é excelente para criar relação com eles, e essencial para o seu desenvolvimento saudável. O que se fala aqui é de quando já sentimos algum ressentimento por ter de estar a brincar a toda a hora, ou alguma culpa por não poder brincar mais tempo. Você não é o entertainer de serviço do seu filho. Sim, pode e deve brincar com ele, de preferência quando lhe apetecer também a si, quando retirar prazer desse momento, quando conseguir estar com o seu filho com presença plena. Quando não quer ou não pode, isso é o que é nesse momento, e aconselho vivamente a seguir a sua intuição e ser honesto com o seu filho. Sem culpas.
Falamos aqui de estabelecer limites de forma saudável. Então a primeira coisa é parar, observar-me e perceber os meus limites. Se estou num momento em que quero e posso brincar, ótimo! “Filhos, ‘bora lá!”. Se não posso, porque estou ocupada, por exemplo, tenho as seguintes opções de ação:
- Dependendo da situação, pode-se comunicar o que está presente de forma clara e confiante, por exemplo: “Agora mesmo não posso brincar, vou fazer X, e vou demorar X tempo. A seguir podemos fazer qualquer coisa juntos”.
- Posso oferecer escolha, se fizer sentido: “Ajudas-me aqui com isto ou vais brincar?“
- Sempre importante ser empático: “Oh, consigo ver que estás a ficar aborrecido com esta situação. Que chato quando os outros estão ocupados e nós queremos companhia… Olha, acho que se nos despacharmos com o jantar ainda temos tempo de fazer esse jogo antes de dormir”
- Fazer gestão de expectativas: “Vou fazer X durante X tempo e a seguir vou passar algum tempo com vocês. Por isso fiquem atentos ao relógio, quando passar esses minutos vou acabar a minha tarefa e vamos brincar!”.
- Abrir espaço às emoções presentes, suas e do seu filho. Permita-lhe queixar-se um pouco e se expressar, ouvindo apenas atentamente (leia sobre escuta atenta, aqui e aqui). Se ele demonstrar insatisfação, acolha essa emoção e mostre-se compreensivo de como é aborrecido quando as coisas não correm como queremos. Como compreende o frustrante que é quando queremos brincar e as pessoas não podem. Diga-lhe que percebe como ele se sente. Fale das suas emoções também.
- E não se esqueça, evitar o caminho da culpa, quando a criança expressar a sua tristeza e ar desamparado de infelicidade profunda (“mas mamã, eu gosto tanto de brincar contigo, vá lá, só um bocadinho…”). Acolha as emoções, e sinta-se na mesma seguro na sua escolha de prioridades para aquele momento. Precisa de estar confiante das suas decisões para que os seus filhos se sintam seguros com a sua comunicação, e não resistam tanto aos limites estabelecidos.
- Assegure que passa tempo de qualidade, com presença plena, de forma regular, com os seus filhos. Assim, nos momentos em que não pode ou não quer brincar, vai estar de consciência tranquila e vai ser mais fácil gerir a situação, dizendo de forma confiante, com um sorriso: “Eu agora não me apetece mesmo nada brincar, querido, estou a aproveitar um pouco para ler o meu livro pois quero muito acabá-lo este fim de semana. Mas olha, não te esqueças que amanhã temos aquele passeio e aposto que vamos brincar imenso”
4. Reveja a sua interferência na brincadeira
Muitas vezes as crianças começam a brincar com algo e somos nós que interrompemos e acabamos por desviar a atenção, porque queremos introduzir uma ideia, uma sugestão, ou porque é hora de acontecer algo. Quando é momento de alguma rotina, se possível devemos deixar a criança acabar por si a brincadeira. Evitar ao máximo interromper os seus momentos de concentração. Quando notar que ela vai transitar de atividade, aproveite para introduzir a ação que quer fazer. Devemos também deixar acontecer todos os momentos de brincadeira espontânea. Interferindo o menos possível e deixando a criança dar asas à sua imaginação e levar a brincadeira para onde a sua criatividade o levar.
Outro ponto importante aqui é evitar propor ou sugerir brincadeiras à criança:
“Olha ali, brinca com os legos!”
“Vai para o teu quarto, tens lá muita coisa.”
“Sei lá, olha faz uns desenhos…”
“Porque não montas uns blocos?”
Deixe ser o seu filho a escolher aquilo com que se vai ocupar. Quanto mais sugere, o provável é que ele resista, além disso não está a ajudar à capacidade dele de tomar decisões e fazer escolhas. Mais vale dizer algo do género “Ah estás aborrecido é? Estou a ver… Às vezes também me sinto aborrecida. Estou curiosa para ver o que teu cérebro vai inventar para tu te entreteres agora”. Porque não se esqueça, estar aborrecido é OK, não tem de salvar o seu filho do aborrecimento!
Pense ainda em respeitar aquilo com que a criança escolhe, ou não escolhe, brincar. Pode haver a tendência de criticar e dar a nossa opinião do que a criança devia fazer:
“Então foste buscar esse jogo, isso já é para bebés, já não é para a tua idade!”
“Vais-te meter a ler a estas horas? isso não tem jeito nenhum.”
“Só sabes brincar com os dinossauros às lutas, estão sempre a atacar-se, não sabes brincar a mais nada?”
“Porque é que não queres brincar com esta boneca? é tão gira!”
“Costumas adorar massa de modelar, porque é que não vais fazer com a tua irmã?”
Evitar estas formulações ajuda a criança a sentir-se mais capaz e mais habilitada a fazer as suas próprias decisões, o que é fundamental no processo de autonomia e confiança em si própria. Limite-se a ficar calado sobre a escolha de brincadeira da criança. Nós os pais queremos tanto bem aos nossos filhos, que num desejo vão de controlo, e numa pressa de resultados, falamos demais, na maioria das vezes. Metemo-nos muito nas pequenas coisas deles, e depois esperamos que eles sejam independentes nas grandes coisas. Curioso, não é?
5. Espaço “sim” para brincar
Uma coisa que facilita muito é ter um espaço seguro para a criança poder brincar, um espaço da casa (mais delimitado se for um bebé) que seja um espaço “sim” ou seja, um espaço onde não há nada com que não possa brincar. Áreas de brincar que estejam cheias de coisas perigosas ou desadequadas bloqueia o processo criativo porque vai fazer com que estejamos sempre a dizer aos miúdos: “Não mexas aí”, “Não vás para aí”, “Não se brinca com isso”, “Nisso não podes mexer” etc. Mais vale ter logo em conta a sua natureza exploratória e preparar os espaços de acordo.
6. Tipos de brinquedos preferíveis
Ajuda muito se optar por disponibilizar aos seus filhos aquilo que se chama em inglês os open ended toys, ou seja, brinquedos sem um fim específico, com os quais se pode brincar de várias maneiras, com múltiplas possibilidades – por exemplo legos, blocos, papel e lápis, bonecos, comidas de brincar ou carrinhos. Este tipo de objetos estimula a imaginação e promove o faz de conta e a interação social, ao contrário de outras atividades onde a criança tem um papel mais passivo. Às vezes os brinquedos mais simples podem ser os que levam a maiores criações. Temos o exemplo clássico da vassoura que pode ser um cavalo, um carro, uma guitarra, um machado, enfim, o que nós quisermos.
E já agora, menos tempo de écrã é sempre uma boa ideia. Sendo que há informações, aprendizagens e competências que as crianças retiram dos desenhos animados e dos jogos de vídeo, sabe-se hoje que o seu uso excessivo está mais que provado ser prejudicial ao desenvolvimento das crianças (leia aqui o artigo da Organização Mundial de Saúde com as mais recentes indicações sobre os hábitos saudáveis de atividades para crianças com menos de 5 anos).